sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Mudança da identidade social da mulher no século XX: Elas no comando, mas de quê?
Posted: 19 Feb 2013 10:02 PM PST
Partindo do cenário político na América do Sul, pesquisadora relembra a mudança da identidade social da mulher no século XX. Será que por estarem no poder elas precisam governar para as minorias?

Nashla Dahás

Em fins do século XIX, Freud previu três destinos para as mulheres: a timidez neurótica e infeliz, a homossexualidade, e o caminho mais normal, a resignação. De lá pra cá, foram tantas as transformações na ciência, nas relações de gênero, de classe, e de trabalho, no entendimento sobre o sexo e os sexos, nos padrões ocidentais de comportamento, nas percepções sobre o bem e o mal. Vivendo, adaptando-se, entregando-se às possibilidades abertas pelo mundo democrático, e negociando com os novos mecanismos de controle do corpo e do pensamento, as mulheres executaram um movimento para fora dos seus lugares tradicionais na casa, no trabalho, na rua ou na cama. Mas isso não ocorreu sem que todo o resto se movesse também.

Talvez, Freud se surpreendesse com as conquistas do movimento feminista: diferenças biológicas entre homens e mulheres não significam diferenças de talento, capacidade de trabalho e de grandeza intelectual. Isso não tem nada de novo, como já mostraram as trajetórias de Catarina da Rússia e Maria Antonieta no século XVIII e Margaret Thatcher no XX. Possivelmente, nascidos entre a casa grande e a senzala, como já assinalava Gilberto Freyre, os povos latino-americanos, produtos de uma combinação inédita entre o meio e uma cultura híbrida, antes de tudo comemoraram a chegada de mulheres ao poder. Michele Bachelet no Chile, Cristina Kirchner na Argentina e Dilma Roussef no Brasil aparecem na nossa cultura como se tivessem necessariamente o compromisso com a transformação da vida dos excluídos, das minorias, dos pobres. A lógica desse pensamento é bastante parecida com aquela que coloca sobre os ombros de Barack Obama fardos tão impossíveis como a intenção de promover a paz entre Israel e Palestina. 

Em grande parte, tal sectarismo é tributário do mítico maio de 1968, quando a diferença foi alçada a categoria de valor mais importante seja na vida política e social, seja para o indivíduo. Aos poucos, a diversidade foi sendo enquadrada institucionalmente, e com a participação dos movimentos feministas, negros, indígenas e homossexuais tornou-se a forma mais comum de identificar o outro e a si mesmo.

Dois anos de governo Dilma
Após dois anos de governo, é possível dizer que a presidenta brasileira está longe de reconstruir os alicerces da política no Brasil: personalismo, paternalismo e predomínio de interesses privados em projetos supostamente nacionais. O fato de José Sarney ter assumido a presidência temporária enquanto Dilma está fora do país parece um bom exemplo. Nos anos de 1970 Sarney integrava a ARENA- Aliança Renovadora Nacional – partido de sustentação da ditadura militar que, na mesma época torturava a guerrilheira “Wanda”, hoje presidente. Ao que tudo indica a memória das mulheres poderosas não tem nada de diferente de qualquer outro ser político do século XXI, ela está à venda.

E eis um novo elemento a ser considerado caso Freud quisesse abrir, hoje, outros caminhos para o futuro feminino: o mercado. A transformação do sonho da liberdade e da onipotência sobre o destino em mercadoria tem sido acompanhada por uma subjetividade tirânica, inalcançável e também neurótica, embora profundamente encantadora. Ava Gardner, Marylin Monroe, Betty Grable e Sandra Dee, as pin-ups americanas que estamparam os maços de cigarro, calendários e pôsteres durante a Segunda Guerra, seriam apenas o começo de um mecanismo que cria padrões de beleza e comportamento específicos para as mulheres atribuindo-lhes um valor de acordo com a proximidade ou afastamento desses modelos. Já em 1913, o escritor austríaco Robert Musil deu ao seu Homem sem qualidades Leona, a amante de beleza aristocrática que deixava os homens boquiabertos, tomados de um desejo muito diferente do que “lhes inspiravam as atrevidas cantoras com penteados de dançarina de tango”. Ao descrever sua intimidade, revela, contudo, uma peculiaridade da bela moça: era incrivelmente comilona, vício que há muito saíra de moda. Nela, os instintos da personalidade ligaram-se não ao coração, mas ao tractus abdominalis, como conta o autor.

Talvez não esteja na política stricto sensu, na reivindicação prática de uma agenda confusa que aponta para liberdade, antiviolência e legalização do aborto, o melhor exemplo de amadurecimento das mulheres em suas relações sociais. Muito arriscadamente, afirmo que está no campo afetivo das pequenas relações humanas, das contínuas contingências, o espaço para a discussão dos limites da natureza humana e da matéria bruta da poesia. Espaço único onde é possível estabelecer relações inéditas e proposições práticas para a vida em sociedade. A construção e o combate às ideologias e conceitos não tem garantido a compreensão do uso sentimental e cotidiano que deles é feito; garante a afirmação retórica da igualdade entre homens e mulheres e a conquista de leis afirmativas e exclusivamente protetoras do sexo feminino, mas não assegura a descoberta de modos de viver e conviver mais honestos e plurais.

Da mácula de Eva, ambiguamente sedutora e responsável pelas origens do pecado, à associação natural com a feitiçaria em tempos de inquisição, passando pelas teses biológicas de superioridade masculina na era da razão, a privação ao âmbito doméstico durante a modernidade, a falta de voz, e a condenação da sexualidade desde sempre impostas pela boa educação de cada época. As mulheres compartilham desde muito tempo uma identidade histórica marcada por experiências universais de exclusão, violência e subserviência, assim como enfrentam hoje dificuldades ligadas a uma rotina velha conhecida dos pater famílias, acostumados a diferentes relações de trabalho, ao compromisso com a qualidade da vida familiar, e com a marginalidade das ruas.

Em todos os casos, os processos que levaram ao desaparecimento as históricas situações de opressão estiveram ligados aos sentimentos, às paixões que levaram padres a largar a batina, a miscigenação pelo desejo mais forte do que o mais português dos preconceitos. Não são poucos os exemplos de coragem para enfrentar a vida moderna, de amor à causa revolucionária diante das torturas mais humilhantes, ou o respeito por si mesma, não como um lesbianismo narcisista, mas como uma capacidade de se apaixonar, de ter e querer dar prazer a partir das sensações, de uma ética profundamente individual, mais do que a partir das tradições culturais e dos padrões contemporâneos. Aliás, a atual liberdade em relação ao homoerotismo tem menos de ruptura do que falta de uma discussão histórica mais ampla, que aborde as relações femininas entre si e com a sociedade de uma perspectiva menos preocupada com demarcações de classe, gênero ou raça. O historiador Ronaldo Vainfas, por exemplo, trata do cotidiano íntimo das mulheres que, no Brasil colonial, experimentavam relações homossexuais por diversas razões como o puro desejo, a coisificação na relação com os homens, o dia a dia de mexericos, trocas de segredos, alcovitagens entre damas, escravas e mulheres livres, ou ainda a curiosidade de senhoras às vésperas do casamento.

Marcha das vadias

Não se trata de descobrir raízes de determinados comportamentos, ou soluções do passado para os enfrentamentos de hoje, mas de tentar entender as relações humanas do presente de maneira mais transversal, evitando estereótipos, preconceitos e marcas específicas da informação de cada época. Por exemplo, a imagem de sexo frágil que há muito recaiu sobre a mulher, contrasta profundamente com a Marcha das Vadias que em 2012 comandou passeatas de mulheres de todas as idades com seios à mostra e crachás de putas. Os grupos feministas que se vestiam de forma masculinizada e defendiam o ódio ao falo são bastante diferentes da estética mercadológica que hoje vende uma identidade homossexual feminina e descolada. Todos, sem exceção, são representações dos modos como esses diferentes grupos se relacionaram com a sociedade, com homens, com a família, com a imprensa, com a política, com o amor, etc., embora o pensamento contemporâneo sempre muito individualista e especializado tenda a compreender as imagens por si, cristalizando generalizações equivocadas e reforçando uma perspectiva evolucionista ou retrógrada conforme os interesses em jogo.

Se ser livre hoje é ser vadia, será preciso entender como o termo que estigmatizou a mulher rebaixando-a, na prática, ao lixo, à mercadoria descartável, pode ajudar a reconfigurar as experiências femininas em sociedade, recriando novos limites para o que é importante, bonito, patológico, obsceno, saudável, erótico, etc. 
Disponível em RHBN
Concílio do Vaticano II - Novos rumos para velhos dogmas
Posted: 19 Feb 2013 09:40 PM PST
O Concílio Vaticano II tentou manter o catolicismo sintonizado com um mundo que mudava vertiginosamente. Mas terá sido bem interpretado?

Rodrigo Coppe Caldeira


Até a década de 1960, o padre celebrava a missa em latim e de costas para os fiéis. Neste mesmo período, a Igreja Católica afirmou que a separação entre o Estado e a religião era um fruto positivo da filosofia moderna. Estas e outras profundas transformações abalaram alguns importantes alicerces em que a Igreja de Roma se baseou a partir do século XVI, com o Concílio de Trento (1545-1563). Era a crise da identidade tridentina, levada a termo com a realização do Concílio Vaticano II (1962-1965), o maior evento religioso do século passado, a 21ª grande reunião de bispos e alguns religiosos de todo o mundo com o intuito de discutir os rumos que a Igreja deve tomar.

A Igreja foi se isolando e se fechando desde o século XVI, primeiramente como reação ao cisma protestante, que adveio das inquietações teológicas de Martinho Lutero (1483-1546), e, posteriormente, ao pensamento liberal e à doutrina comunista. Tornava-se uma “fortaleza sitiada”, interpretando a emergência da modernidade como um grande mal que se abatia sobre o cristianismo. No século XIX e no início do XX, esta tendência foi reforçada ainda mais com os papas Gregório XVI (1831-1846), Pio IX (1846-1878) e Pio X (1903-1914), que lançaram inúmeras condenações contra os principais elementos da cultura moderna, ficando conhecida como ultramontana, “detrás os montes”, ou seja, referente àqueles que estão aquém dos Alpes, com Roma e apoiando todas as decisões do Sumo Pontífice. Porém, essa tendência passou a conviver com diferentes movimentos no seio do catolicismo que, ao contrário, defendiam uma Igreja capaz de dialogar com o mundo, mais aberta à participação do fiel em suas atividades, e que respondesse de forma mais plausível aos desafios do mundo.

Quando o Concílio Vaticano II foi convocado, o mundo já estava bem diferente daquele dos séculos anteriores: já vira duas grandes guerras, o surgimento do nazifascismo, a emergência e a consolidação de Estados comunistas por todo o mundo, a concretização das democracias liberais, o desenvolvimento dos meios de comunicação, a liberalização moral, o pluralismo religioso e a diminuição da influência das instituições religiosas na esfera pública. O Vaticano II foi a resposta da Igreja aos novos desafios colocados pelo novo mundo que surgia. Ou seja, uma grande tentativa de atualizar a Igreja – realizar seu aggiornamento, palavra em italiano que significa atualização, muito utilizada pelos bispos e religiosos participantes do concílio.

O fato é que este concílio se diferenciou de todos os anteriores, pois não tinha sido convocado para condenar uma forma de se pensar e agir, nem para promulgar dogmas, como acorrera nos vinte já então realizados. Em quatro anos, de 1962 a 1965, inúmeras questões doutrinais, morais e políticas foram debatidas em uma assembleia instalada na nave central da Catedral de São Pedro, no Vaticano, com a presença de milhares de bispos e religiosos, vindos dos quatro cantos do planeta. A Igreja precisava dar uma resposta a esse mundo em transformação, reafirmar seu papel na contemporaneidade e apontar novos rumos. Precisava demonstrar que não era uma instituição tradicional e milenar já sem contato com a realidade circundante e sem ressonância no mundo.

Foram debatidos temas que mudaram significativamente o rosto do catolicismo. Pretendia-se passar de uma Igreja fechada em si mesma a uma Igreja aberta ao mundo, capaz de seguir sua missão, levando a mensagem evangélica a todos os confins do mundo, e assim aprender com ele. Uma profunda mudança de compreensão de si mesma, que ainda se continua a sentir.

A assembleia produziu quatro constituições, nove decretos e duas declarações. Um ponto de seus documentos mais centrais, a Constituição Pastoral Gaudium et spes (07/12/1965), afirma que a Igreja “está firmemente persuadida de que pode receber preciosa e diversificada ajuda do mundo, não só dos homens em particular, mas também da sociedade, dos seus dotes e atividades (…) caminha juntamente com a humanidade inteira. Experimenta com o mundo a mesma sorte terrena”. Com essa ideia, entendia-se o mundo moderno não mais como um inimigo a ser combatido, mas – naquilo em que trazia de positivo em relação ao homem e seus maiores dramas – um aliado.

As principais questões discutidas foram as litúrgicas, isto é, aquelas relativas aos ritos do catolicismo; questões ecumênicas, sobre as relações entre os cristãos separados; sacerdócio; a missão; a educação; o diálogo inter-religioso e a liberdade religiosa. Entre estes temas, uma nova perspectiva é assumida, consolidando a imagem de “Povo de Deus”, a imagem de todos o fiéis, que agora são compreendidos como aqueles que exercem um “sacerdócio comum nos Sacramentos”. O lugar dos leigos é elevado a uma importância jamais assumida na história do catolicismo.

Mas o caminho que levou à promulgação dos textos finais e seus avanços foi marcado por tensões entre sensibilidades diversas no interior do concílio. Logo apareceram grupos que buscaram orientar o concílio em suas decisões. Dois deles se mostraram extremamente aguerridos para fazer valer suas posições nos resultados finais: um, mais progressista, com a presença maciça de bispos de Alemanha, Áustria, Bélgica, Holanda e da América Latina, inclusive do Brasil, como Hélder Câmara (1909-1999), que defendiam uma distensão entre a Igreja e os valores modernos; e outro, que pode ser chamado de conservador e era minoria, com a presença marcante de italianos, ligados à Cúria Romana, franceses, norte-americanos e também alguns brasileiros, como Geraldo de Proença Sigaud (1909-1999) e Antônio de Castro Mayer (1904-1991). Além destes três bispos, que desempenharam importantes papéis no concílio, o Brasil teve mais 243 representantes, entre eles José Ivo Lorscheiter (1927-2007), Jaime de Barros Câmara (1894-1971), Eugenio de Araujo Sales (1920-2012) e Clemente José Carlos Isnard (1917-2005).

Durante as reuniões, houve um crescente embate entre essas duas concepções, que acabou resultando em um movimento de conquista das mentes dos padres conciliares a partir de palestras, encontros e até mesmo panfletagem. O grupo que saiu “vitorioso” do concílio foi aquele defensor do diálogo com o mundo moderno, reconhecido como a “maioria conciliar”, pois conseguiu inserir nos textos finais a sensibilidade que os marcava, especialmente a compreensão de que o concílio não deveria condenar abertamente nenhuma corrente moderna de pensamento. Porém, a “minoria conciliar” – desejosa, entre outras coisas, de um novo dogma mariano, da manutenção da liturgia do Concílio de Trento e de uma condenação formal do comunismo – conseguiu inserir seus posicionamentos em alguns trechos dos textos finais. 

As resoluções conciliares foram encontrando aplicação progressiva sob o comando do papa Paulo VI nos anos que se seguiram ao final do concílio, em dezembro de 1965. Porém, as posições contrárias presentes nos debates conciliares estenderam-se ao período posterior. Por um lado, grande entusiasmo e otimismo disseminavam-se em alguns meios, e, junto de alguns deles, também posicionamentos teológicos e litúrgicos que excediam em muito as determinações do concílio. De outro, aqueles não tão otimistas, defensores de uma aplicação calma e cautelosa, além dos que, como Marcel Lefebvre e Antonio de Castro Mayer, radicalizam seu discurso assumindo uma posição anticonciliar, afirmando inclusive ser o concílio ilegítimo.

Hoje, entre os historiadores do catolicismo, há discussões sobre os significados do Concílio Vaticano II, sua atualidade, ou se um novo concílio se faz necessário. A questão central se debruça sobre os papados de João Paulo II (1978-2005) e Bento XVI. O primeiro cumpriu e o segundo cumpre os programas do concílio? Ou, ao contrário, como defendem alguns, eles dificultaram sua aplicação ao interpretar o concílio de maneira restrita?

Rodrigo Coppe Caldeiraé professor da PUC-MG e autor de Os baluartes da tradição: o conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II (CRV, 2011).
Disponível em RHBN

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