Mudança da identidade social da mulher no século XX: Elas no comando, mas de quê?
Posted: 19 Feb 2013 10:02 PM PST
Partindo do
cenário político na América do Sul, pesquisadora relembra a mudança da
identidade social da mulher no século XX. Será que por estarem no poder
elas precisam governar para as minorias?
Em fins do
século XIX, Freud previu três destinos para as mulheres: a timidez
neurótica e infeliz, a homossexualidade, e o caminho mais normal, a
resignação. De lá pra cá, foram tantas as transformações na ciência, nas
relações de gênero, de classe, e de trabalho, no entendimento sobre o
sexo e os sexos, nos padrões ocidentais de comportamento, nas percepções
sobre o bem e o mal. Vivendo, adaptando-se, entregando-se às
possibilidades abertas pelo mundo democrático, e negociando com os novos
mecanismos de controle do corpo e do pensamento, as mulheres executaram
um movimento para fora dos seus lugares tradicionais na casa, no
trabalho, na rua ou na cama. Mas isso não ocorreu sem que todo o resto
se movesse também.
Talvez,
Freud se surpreendesse com as conquistas do movimento feminista:
diferenças biológicas entre homens e mulheres não significam diferenças
de talento, capacidade de trabalho e de grandeza intelectual. Isso não
tem nada de novo, como já mostraram as trajetórias de Catarina da Rússia
e Maria Antonieta no século XVIII e Margaret Thatcher no XX.
Possivelmente, nascidos entre a casa grande e a senzala, como já
assinalava Gilberto Freyre, os povos latino-americanos, produtos de uma
combinação inédita entre o meio e uma cultura híbrida, antes de tudo
comemoraram a chegada de mulheres ao poder. Michele Bachelet no Chile,
Cristina Kirchner na Argentina e Dilma Roussef no Brasil aparecem na
nossa cultura como se tivessem necessariamente o compromisso com a
transformação da vida dos excluídos, das minorias, dos pobres. A lógica
desse pensamento é bastante parecida com aquela que coloca sobre os
ombros de Barack Obama fardos tão impossíveis como a intenção de
promover a paz entre Israel e Palestina.
Em grande
parte, tal sectarismo é tributário do mítico maio de 1968, quando a
diferença foi alçada a categoria de valor mais importante seja na vida
política e social, seja para o indivíduo. Aos poucos, a diversidade foi
sendo enquadrada institucionalmente, e com a participação dos movimentos
feministas, negros, indígenas e homossexuais tornou-se a forma mais
comum de identificar o outro e a si mesmo.
Dois anos de governo Dilma
Após dois
anos de governo, é possível dizer que a presidenta brasileira está longe
de reconstruir os alicerces da política no Brasil: personalismo,
paternalismo e predomínio de interesses privados em projetos
supostamente nacionais. O fato de José Sarney ter assumido a presidência
temporária enquanto Dilma está fora do país parece um bom exemplo. Nos
anos de 1970 Sarney integrava a ARENA- Aliança Renovadora Nacional –
partido de sustentação da ditadura militar que, na mesma época torturava
a guerrilheira “Wanda”, hoje presidente. Ao que tudo indica a memória
das mulheres poderosas não tem nada de diferente de qualquer outro ser
político do século XXI, ela está à venda.
E eis um
novo elemento a ser considerado caso Freud quisesse abrir, hoje, outros
caminhos para o futuro feminino: o mercado. A transformação do sonho da
liberdade e da onipotência sobre o destino em mercadoria tem sido
acompanhada por uma subjetividade tirânica, inalcançável e também
neurótica, embora profundamente encantadora. Ava Gardner, Marylin
Monroe, Betty Grable e Sandra Dee, as pin-ups americanas que estamparam
os maços de cigarro, calendários e pôsteres durante a Segunda Guerra,
seriam apenas o começo de um mecanismo que cria padrões de beleza e
comportamento específicos para as mulheres atribuindo-lhes um valor de
acordo com a proximidade ou afastamento desses modelos. Já em 1913, o
escritor austríaco Robert Musil deu ao seu Homem sem qualidades Leona, a
amante de beleza aristocrática que deixava os homens boquiabertos,
tomados de um desejo muito diferente do que “lhes inspiravam as
atrevidas cantoras com penteados de dançarina de tango”. Ao descrever
sua intimidade, revela, contudo, uma peculiaridade da bela moça: era
incrivelmente comilona, vício que há muito saíra de moda. Nela, os
instintos da personalidade ligaram-se não ao coração, mas ao tractus
abdominalis, como conta o autor.
Talvez não
esteja na política stricto sensu, na reivindicação prática de uma agenda
confusa que aponta para liberdade, antiviolência e legalização do
aborto, o melhor exemplo de amadurecimento das mulheres em suas relações
sociais. Muito arriscadamente, afirmo que está no campo afetivo das
pequenas relações humanas, das contínuas contingências, o espaço para a
discussão dos limites da natureza humana e da matéria bruta da poesia.
Espaço único onde é possível estabelecer relações inéditas e proposições
práticas para a vida em sociedade. A construção e o combate às
ideologias e conceitos não tem garantido a compreensão do uso
sentimental e cotidiano que deles é feito; garante a afirmação retórica
da igualdade entre homens e mulheres e a conquista de leis afirmativas e
exclusivamente protetoras do sexo feminino, mas não assegura a
descoberta de modos de viver e conviver mais honestos e plurais.
Da mácula de
Eva, ambiguamente sedutora e responsável pelas origens do pecado, à
associação natural com a feitiçaria em tempos de inquisição, passando
pelas teses biológicas de superioridade masculina na era da razão, a
privação ao âmbito doméstico durante a modernidade, a falta de voz, e a
condenação da sexualidade desde sempre impostas pela boa educação de
cada época. As mulheres compartilham desde muito tempo uma identidade
histórica marcada por experiências universais de exclusão, violência e
subserviência, assim como enfrentam hoje dificuldades ligadas a uma
rotina velha conhecida dos pater famílias, acostumados a diferentes
relações de trabalho, ao compromisso com a qualidade da vida familiar, e
com a marginalidade das ruas.
Em todos os
casos, os processos que levaram ao desaparecimento as históricas
situações de opressão estiveram ligados aos sentimentos, às paixões que
levaram padres a largar a batina, a miscigenação pelo desejo mais forte
do que o mais português dos preconceitos. Não são poucos os exemplos de
coragem para enfrentar a vida moderna, de amor à causa revolucionária
diante das torturas mais humilhantes, ou o respeito por si mesma, não
como um lesbianismo narcisista, mas como uma capacidade de se apaixonar,
de ter e querer dar prazer a partir das sensações, de uma ética
profundamente individual, mais do que a partir das tradições culturais e
dos padrões contemporâneos. Aliás, a atual liberdade em relação ao
homoerotismo tem menos de ruptura do que falta de uma discussão
histórica mais ampla, que aborde as relações femininas entre si e com a
sociedade de uma perspectiva menos preocupada com demarcações de classe,
gênero ou raça. O historiador Ronaldo Vainfas, por exemplo, trata do
cotidiano íntimo das mulheres que, no Brasil colonial, experimentavam
relações homossexuais por diversas razões como o puro desejo, a
coisificação na relação com os homens, o dia a dia de mexericos, trocas
de segredos, alcovitagens entre damas, escravas e mulheres livres, ou
ainda a curiosidade de senhoras às vésperas do casamento.
Marcha das vadias
Não se trata
de descobrir raízes de determinados comportamentos, ou soluções do
passado para os enfrentamentos de hoje, mas de tentar entender as
relações humanas do presente de maneira mais transversal, evitando
estereótipos, preconceitos e marcas específicas da informação de cada
época. Por exemplo, a imagem de sexo frágil que há muito recaiu sobre a
mulher, contrasta profundamente com a Marcha das Vadias que em 2012
comandou passeatas de mulheres de todas as idades com seios à mostra e
crachás de putas. Os grupos feministas que se vestiam de forma
masculinizada e defendiam o ódio ao falo são bastante diferentes da
estética mercadológica que hoje vende uma identidade homossexual
feminina e descolada. Todos, sem exceção, são representações dos modos
como esses diferentes grupos se relacionaram com a sociedade, com
homens, com a família, com a imprensa, com a política, com o amor, etc.,
embora o pensamento contemporâneo sempre muito individualista e
especializado tenda a compreender as imagens por si, cristalizando
generalizações equivocadas e reforçando uma perspectiva evolucionista ou
retrógrada conforme os interesses em jogo.
Se ser livre
hoje é ser vadia, será preciso entender como o termo que estigmatizou a
mulher rebaixando-a, na prática, ao lixo, à mercadoria descartável,
pode ajudar a reconfigurar as experiências femininas em sociedade,
recriando novos limites para o que é importante, bonito, patológico,
obsceno, saudável, erótico, etc.
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Concílio do Vaticano II - Novos rumos para velhos dogmas
Posted: 19 Feb 2013 09:40 PM PST
O
Concílio Vaticano II tentou manter o catolicismo sintonizado com um
mundo que mudava vertiginosamente. Mas terá sido bem interpretado?
Rodrigo Coppe Caldeira
Até a década
de 1960, o padre celebrava a missa em latim e de costas para os fiéis.
Neste mesmo período, a Igreja Católica afirmou que a separação entre o
Estado e a religião era um fruto positivo da filosofia moderna. Estas e
outras profundas transformações abalaram alguns importantes alicerces em
que a Igreja de Roma se baseou a partir do século XVI, com o Concílio
de Trento (1545-1563). Era a crise da identidade tridentina, levada a
termo com a realização do Concílio Vaticano II (1962-1965), o maior
evento religioso do século passado, a 21ª grande reunião de bispos e
alguns religiosos de todo o mundo com o intuito de discutir os rumos que
a Igreja deve tomar.
A Igreja foi
se isolando e se fechando desde o século XVI, primeiramente como reação
ao cisma protestante, que adveio das inquietações teológicas de
Martinho Lutero (1483-1546), e, posteriormente, ao pensamento liberal e à
doutrina comunista. Tornava-se uma “fortaleza sitiada”, interpretando a
emergência da modernidade como um grande mal que se abatia sobre o
cristianismo. No século XIX e no início do XX, esta tendência foi
reforçada ainda mais com os papas Gregório XVI (1831-1846), Pio IX
(1846-1878) e Pio X (1903-1914), que lançaram inúmeras condenações
contra os principais elementos da cultura moderna, ficando conhecida
como ultramontana, “detrás os montes”, ou seja, referente àqueles que
estão aquém dos Alpes, com Roma e apoiando todas as decisões do Sumo
Pontífice. Porém, essa tendência passou a conviver com diferentes
movimentos no seio do catolicismo que, ao contrário, defendiam uma
Igreja capaz de dialogar com o mundo, mais aberta à participação do fiel
em suas atividades, e que respondesse de forma mais plausível aos
desafios do mundo.
Quando o
Concílio Vaticano II foi convocado, o mundo já estava bem diferente
daquele dos séculos anteriores: já vira duas grandes guerras, o
surgimento do nazifascismo, a emergência e a consolidação de Estados
comunistas por todo o mundo, a concretização das democracias liberais, o
desenvolvimento dos meios de comunicação, a liberalização moral, o
pluralismo religioso e a diminuição da influência das instituições
religiosas na esfera pública. O Vaticano II foi a resposta da Igreja aos
novos desafios colocados pelo novo mundo que surgia. Ou seja, uma
grande tentativa de atualizar a Igreja – realizar seu aggiornamento,
palavra em italiano que significa atualização, muito utilizada pelos
bispos e religiosos participantes do concílio.
O fato é que
este concílio se diferenciou de todos os anteriores, pois não tinha
sido convocado para condenar uma forma de se pensar e agir, nem para
promulgar dogmas, como acorrera nos vinte já então realizados. Em quatro
anos, de 1962 a 1965, inúmeras questões doutrinais, morais e políticas
foram debatidas em uma assembleia instalada na nave central da Catedral
de São Pedro, no Vaticano, com a presença de milhares de bispos e
religiosos, vindos dos quatro cantos do planeta. A Igreja precisava dar
uma resposta a esse mundo em transformação, reafirmar seu papel na
contemporaneidade e apontar novos rumos. Precisava demonstrar que não
era uma instituição tradicional e milenar já sem contato com a realidade
circundante e sem ressonância no mundo.
Foram
debatidos temas que mudaram significativamente o rosto do catolicismo.
Pretendia-se passar de uma Igreja fechada em si mesma a uma Igreja
aberta ao mundo, capaz de seguir sua missão, levando a mensagem
evangélica a todos os confins do mundo, e assim aprender com ele. Uma
profunda mudança de compreensão de si mesma, que ainda se continua a
sentir.
A assembleia
produziu quatro constituições, nove decretos e duas declarações. Um
ponto de seus documentos mais centrais, a Constituição Pastoral Gaudium
et spes (07/12/1965), afirma que a Igreja “está firmemente persuadida de
que pode receber preciosa e diversificada ajuda do mundo, não só dos
homens em particular, mas também da sociedade, dos seus dotes e
atividades (…) caminha juntamente com a humanidade inteira. Experimenta
com o mundo a mesma sorte terrena”. Com essa ideia, entendia-se o mundo
moderno não mais como um inimigo a ser combatido, mas – naquilo em que
trazia de positivo em relação ao homem e seus maiores dramas – um
aliado.
As
principais questões discutidas foram as litúrgicas, isto é, aquelas
relativas aos ritos do catolicismo; questões ecumênicas, sobre as
relações entre os cristãos separados; sacerdócio; a missão; a educação; o
diálogo inter-religioso e a liberdade religiosa. Entre estes temas, uma
nova perspectiva é assumida, consolidando a imagem de “Povo de Deus”, a
imagem de todos o fiéis, que agora são compreendidos como aqueles que
exercem um “sacerdócio comum nos Sacramentos”. O lugar dos leigos é
elevado a uma importância jamais assumida na história do catolicismo.
Mas o
caminho que levou à promulgação dos textos finais e seus avanços foi
marcado por tensões entre sensibilidades diversas no interior do
concílio. Logo apareceram grupos que buscaram orientar o concílio em
suas decisões. Dois deles se mostraram extremamente aguerridos para
fazer valer suas posições nos resultados finais: um, mais progressista,
com a presença maciça de bispos de Alemanha, Áustria, Bélgica, Holanda e
da América Latina, inclusive do Brasil, como Hélder Câmara (1909-1999),
que defendiam uma distensão entre a Igreja e os valores modernos; e
outro, que pode ser chamado de conservador e era minoria, com a presença
marcante de italianos, ligados à Cúria Romana, franceses,
norte-americanos e também alguns brasileiros, como Geraldo de Proença
Sigaud (1909-1999) e Antônio de Castro Mayer (1904-1991). Além destes
três bispos, que desempenharam importantes papéis no concílio, o Brasil
teve mais 243 representantes, entre eles José Ivo Lorscheiter
(1927-2007), Jaime de Barros Câmara (1894-1971), Eugenio de Araujo Sales
(1920-2012) e Clemente José Carlos Isnard (1917-2005).
Durante as
reuniões, houve um crescente embate entre essas duas concepções, que
acabou resultando em um movimento de conquista das mentes dos padres
conciliares a partir de palestras, encontros e até mesmo panfletagem. O
grupo que saiu “vitorioso” do concílio foi aquele defensor do diálogo
com o mundo moderno, reconhecido como a “maioria conciliar”, pois
conseguiu inserir nos textos finais a sensibilidade que os marcava,
especialmente a compreensão de que o concílio não deveria condenar
abertamente nenhuma corrente moderna de pensamento. Porém, a “minoria
conciliar” – desejosa, entre outras coisas, de um novo dogma mariano, da
manutenção da liturgia do Concílio de Trento e de uma condenação formal
do comunismo – conseguiu inserir seus posicionamentos em alguns trechos
dos textos finais.
As
resoluções conciliares foram encontrando aplicação progressiva sob o
comando do papa Paulo VI nos anos que se seguiram ao final do concílio,
em dezembro de 1965. Porém, as posições contrárias presentes nos debates
conciliares estenderam-se ao período posterior. Por um lado, grande
entusiasmo e otimismo disseminavam-se em alguns meios, e, junto de
alguns deles, também posicionamentos teológicos e litúrgicos que
excediam em muito as determinações do concílio. De outro, aqueles não
tão otimistas, defensores de uma aplicação calma e cautelosa, além dos
que, como Marcel Lefebvre e Antonio de Castro Mayer, radicalizam seu
discurso assumindo uma posição anticonciliar, afirmando inclusive ser o
concílio ilegítimo.
Hoje, entre
os historiadores do catolicismo, há discussões sobre os significados do
Concílio Vaticano II, sua atualidade, ou se um novo concílio se faz
necessário. A questão central se debruça sobre os papados de João Paulo
II (1978-2005) e Bento XVI. O primeiro cumpriu e o segundo cumpre os
programas do concílio? Ou, ao contrário, como defendem alguns, eles
dificultaram sua aplicação ao interpretar o concílio de maneira
restrita?
* Rodrigo
Coppe Caldeiraé professor da PUC-MG e autor de Os baluartes da tradição:
o conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II (CRV,
2011).
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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013
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