Entenda como será a reforma política brasileira e quais pontos que serão debatidos
O Brasil foi despertado de um certo torpor anti-político por meio
de um conjunto de manifestações públicas que tomaram as ruas das
principais cidades brasileiras nas últimas semanas. Estas manifestações
hoje podem ser diferenciadas em dois momentos: em um primeiro, elas
foram organizadas por grupos de movimentos sociais e movimentos de
estudantes e foram duramente reprimidas, especialmente, na cidade de São
Paulo.
Também vale a pena lembrar a reação da mídia a estas manifestações
que, neste primeiro momento, foram classificadas como desordem ou
baderna. A partir daí, passamos para um segundo momento que se iniciou
na semana passada e ainda está em curso: nele, as manifestações se
ampliaram em quantidade e em número de demandas. Estenderam-se por pelo
menos 70 cidades e chegaram a mobilizar mais de um milhão de pessoas.
Também nesta nova configuração, a mídia apoiou fortemente o
movimento, mas destacou aquilo que ela bem entendeu, em especial o
problema da corrupção no governo federal. Ao mesmo tempo, episódios de
violência entre a polícia e pequenos grupos no interior das
manifestações se generalizaram em especial no Rio de Janeiro, São Paulo,
Belo Horizonte e Brasília.
Duas questões se colocaram neste segundo momento, uma para o
movimento e a outra o governo federal. Para o movimento, colocou-se o
problema da articulação de uma pauta e da contenção da violência. Assim,
além das demandas específicas como a revogação do aumento no preço das
passagens, ele acabou fazendo demandas ou muito gerais ou muito
contraditórias. Aqui o que me parece é que se estabeleceu um descompasso
de objetivos entre o núcleo do movimento e as ações de parte das suas
camadas exteriores. Esta é uma contradição importante porque o movimento
começou a ser visto como patrocinador de um conjunto de pautas muito
desgastadas junto à opinião pública, como por exemplo, a redução da
maioridade penal.
Assim, o principal desafio do movimento é a busca de uma
convergência de pauta e de práticas entre os seus participantes. De
alguma maneira esta convergência acabou sendo tecida em torno do tema da
reforma politica.
Há uma segunda questão que se coloca principalmente para o governo federal.
A partir da segunda semana das manifestações, a presidenta Dilma
Rousseff se viu acuada pelo apoio da oposição e da midia que, de certo
modo, tentaram voltar o movimento contra ela. Dilma tomou duas
providências, ambas acertadas: a primeira, reconhecer a legitimidade das
manifestações e o papel positivo por elas desempenhado no sistema
democrático; a segunda, chamar as lideranças do movimento a Brasília e
propor uma agenda positiva para o país. Esta agenda acabou sendo tomada
por uma proposta: a realização de um referendo para a convocação de uma
constituinte exclusiva voltada para a reforma política. Ainda que parte
desta proposta tenha sido revista, irei tomá-la como ponto de partida
devido à importância do tema. Ao final deste artigo, formularei uma
proposta alternativa em diálogo com a proposta que se encontra na mesa
hoje.
A Constituição de 1988 pode ser considerada exitosa por diversos
motivos. Ela ampliou fortemente a soberania popular e a participação já
no seu artigo primeiro. Universalizou políticas públicas importantes
como a saúde. Transformou a assistência social em direito. E criou
espaço para a democratização das políticas urbanas. Além disto, aumentou
as prerrogativas do Ministério Público e do Poder Judiciário, o que,
independentemente de alguns abusos que temos visto, permitiu a
ampliação das estruturas de direitos no país por meio de decisões
importantes como a demarcação das terras indígenas e a aprovação das
ações afirmativas.
A Constituição de 1988 inovou em quase todos os campos, com exceção
de um: a organização do sistema político. Aí vemos diversos problemas: a
forma de financiamento, a proliferação de partidos, a dificuldade em
formar coalizões e a forma absurda como o governo forja maiorias no
Congresso. Todos estes pontos tornam o Congresso mais frágil e apontam
para a necessidade da reforma política.
No entanto, seja pelo papel da constituição na ampliação de
direitos, seja pela normatividade especifica que existe no Brasil, não
seria bom fazer uma Constituinte exclusiva, tal como foi proposto pela
presidente na última segunda-feira.
Forneço alguns argumentos nesta direção. O primeiro deles reside na
dificuldade de delimitar o que é uma reforma política. A Constituição
de 1988 é bastante ampla e se encaixariam na definição de políticas as
seguintes partes: a organização do sistema político, a organização da
estrutura federativa, as políticas sociais e a relação entre o Poderes.
Ou seja, com exceção das cláusulas pétreas, esta seria uma reforma
generalizada ou poderia vir a se tornar caso os constituintes assim o
desejassem.
Neste sentido, seria quase como convocar uma Assembleia
Constituinte e recomeçar a nossa vida constitucional do zero. Neste
sentido, a proposta que está na mesa hoje, a do plebiscito, parece mais
adequada.
Vale a pena pensar em algumas propostas alternativas ou na combinação de algumas propostas que desempenhem um papel semelhante.
Em primeiro lugar, proponho que seja selecionado um conjunto de
problemas a serem tratados pela reforma política sob a garantia de que o
Congresso irá examiná-los e votá-los. Uma possibilidade é a do
plebiscito com o apontamento para o Congresso de questões a serem
trabalhadas na reforma politica. Esta é uma boa possibilidade, mas, para
ser colocada em um plebiscito, não pode ter mais do que algumas
questões.
Dificilmente a população conseguiria discutir e se posicionar em relação a um número alto de questões.
Outra possibilidade é uma grande campanha nacional conduzindo a uma
iniciativa popular de lei que poderia ter o apoio de amplos setores do
sistema político e que já contasse com formulações legais mais precisas
sobre onde se quer chegar. Talvez uma combinação entre as duas propostas
seja o ideal.
Ainda assim, para que a reforma política se torne factível é necessário limitar alguns dos seus pontos.
Uma discussão neste nível de magnitude sobre a reforma política
deveria abarcar apenas cinco pontos: financiamento de campanha; cláusula
de barreira (que acho que deveria voltar com um teto mais baixo, 1% a
2%); lista de votação aberta versus fechada; voto distrital - que não
sou a favor, mas acho inevitável discutir; redefinição dos mandatos com
propostas de
recall ou suspensão.
Ir além destes pontos tornaria quase inviável um plebiscito e, no final, geraria muita frustração.
Estes pontos podem ser votados em plebiscito e especificados em uma
proposta de iniciativa popular de lei. Mas, ainda mais importante, acho
que eles deveriam envolver um pacto entre a presidente e o Congresso de
finalização da reforma em, no máximo, seis meses.
O Brasil avançou enormemente nestas duas semanas.
O movimento das ruas já mostrou a sua importância ao revogar o
aumento das tarifas de ônibus, ao derrubar a PEC-37 e ao aprovar
aumentos significativos nas verbas para a saúde e a educação. Uma
reforma política viável coroaria este processo.
Carta Capital